Renato Cotta: Engenheiro defende a ampliação de investimentos na área nuclear
Pesquisador da UFRJ participou do desenvolvimento da tecnologia nacional das ultracentrífugas para enriquecimento de urânio Yuri Vasconcelos, da
11/08/2025 às 08:49

Ana Carolina Fernandes
Yuri Vasconcelos, da Revista Pesquisa FAPESP
Quando tinha 15 anos, uma visita ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi decisiva para que o jovem secundarista Renato Machado Cotta decidisse seu futuro profissional. Ele imaginava seguir a carreira diplomática, mas ao percorrer a Exposição Brasil Nuclear, em 1975, sentiu-se atraído pela tecnologia nuclear. “Fiquei fascinado pela vida do Almirante Álvaro Alberto [1889-1976], pioneiro do Programa Nuclear Brasileiro, e pela participação da Marinha nesse setor”, recorda.
Após graduar-se em engenharia com ênfase na área nuclear na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cursou o doutorado na Universidade Estadual da Carolina do Norte (NCSU), nos Estados Unidos. A instituição foi pioneira no mundo na oferta do curso de engenharia nuclear.
Cotta concluiu o doutorado em 1985 e, em seguida, foi chamado para atuar como consultor do Programa Nuclear da Marinha em paralelo à atividade de docência no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP). Na Marinha, participou de projetos como o das ultracentrífugas para enriquecimento de urânio, equipamento fundamental para que esse mineral possa ser usado como combustível em reatores nucleares.
Recentemente, Cotta, de 65 anos, recebeu o mais prestigiado prêmio global da área de ciências térmicas, a Medalha Luikov. Foi o primeiro pesquisador do hemisfério Sul agraciado com a honraria. “Durante a premiação, proferi a palestra mais importante da minha carreira para uma plateia de 800 cientistas da área”, afirma.
Cotta é casado com a engenheira mecânica Carolina Cotta, professora, como ele, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe) da UFRJ. O casal tem três filhos: Victor, 22, Clara, 15, Gabriel, 13. Bianca, sua primogênita, filha do casamento anterior, morreu aos 25 anos em um acidente aéreo ocorrido em 2009.
Como avalia os investimentos do Brasil no setor nuclear?
Poderíamos investir mais por vários motivos. Em primeiro lugar, dominamos tecnologicamente o ciclo do combustível nuclear e temos reservas significativas de urânio. No atual cenário de reaquecimento da geração nuclear de potência e tensões geopolíticas envolvendo produtores e consumidores do minério, poderíamos nos beneficiar como exportadores de urânio enriquecido, com alto valor agregado. Para tanto, precisaríamos investir na expansão da planta da INB [Indústrias Nucleares do Brasil] em Resende, no Rio de Janeiro, além da própria capacidade de produção das ultracentrífugas pela Marinha – lembrando que há espaço para pesquisa e otimização do projeto das ultracentrífugas. A tecnologia para fabricação desse equipamento é restrita a poucos países, como Estados Unidos, China, Rússia, França, Alemanha, Holanda, Reino Unido e Japão. Antes disso, teríamos que intensificar a mineração de urânio e produção do yellow cake, o concentrado de urânio, iniciando o projeto de extração do minério em Santa Quitéria, no Ceará. Temos também de concluir a planta-piloto de conversão de hexafluoreto de urânio [UF6] em Iperó, em São Paulo, que será referência para uma unidade de maior porte quando tivermos escala econômica para a conversão de todo o UF6 necessário ao país. Na forma gasosa, o hexafluoreto de urânio é enriquecido nas ultracentrífugas e dá origem ao combustível nuclear.
Qual o outro motivo para investir nessa área?
Após projetar e construir a primeira unidade crítica [reator de pesquisa sem geração de potência] totalmente desenvolvida no país, o Ipen-MB-01, em 1988, finalmente estamos mais próximos de comissionar o nosso primeiro reator de potência nacional, que gera energia térmica e elétrica, o Labgene [Laboratório de Geração de Energia Nucleoelétrica]. Esse equipamento é o protótipo em terra do reator nuclear de propulsão do futuro submarino nuclear Álvaro Alberto [ver reportagem]. Além disso, o Reator Multipropósito Brasileiro [RMB], voltado à produção de radioisótopos, a base para os radiofármacos usados em medicina nuclear, recebeu verba suficiente para iniciar a sua construção em Iperó. Ele será, nos próximos anos, o principal projeto em implantação na área nuclear no país, enquanto as obras da usina de Angra 3 não forem retomadas. Angra 3 não é mais uma dúvida, é uma obviedade. Os sucessivos adiamentos do projeto, entretanto, demonstram resistência política à sua conclusão. O dogma da transição energética é a melhor defesa para sua retomada.
Como as usinas nucleares, consideradas por anos vilãs do ambiente, podem ajudar na transição energética?
A energia nuclear para geração de eletricidade sempre sofreu com o estigma das armas nucleares, apesar de todos os esforços dos serviços de comunicação das entidades da área em distinguir os dois usos. Os três acidentes com usinas nucleares, em particular Chernobyl, na antiga União Soviética, em 1986, e Fukushima, no Japão, em 2011, também afetaram a confiança da sociedade e magnificaram essa “radiofobia”. O terceiro acidente foi em Three Miles Island, nos Estados Unidos, em 1979. Países que investiram de forma relevante em energia nuclear, como a França, desativando termoelétricas a carvão e a óleo, conseguiram reduções significativas nas emissões de CO₂ [dióxido de carbono], apesar do contínuo crescimento populacional e econômico. A pressão internacional para redução de emissões leva naturalmente à escolha da energia nuclear como geração de base para as matrizes energéticas com fontes renováveis intermitentes dos principais países industrializados. Além disso, a cogeração nuclear, em particular empregando-se o calor produzido nos diferentes tipos de reatores, para redução de emissões em diferentes setores industriais, como siderurgia, geração de hidrogênio, óleo e gás, é um forte atrativo para a implantação de novos projetos de reatores avançados, de geração IV, e pequenos reatores modulares [SMR].
O que são e para que servem reatores nucleares de menor porte?
Os dois maiores argumentos contrários às usinas nucleares sempre foram o alto custo de implantação, apesar do baixo custo operacional, e os temores relativos à segurança nuclear, mesmo com os baixíssimos índices de acidentes e de vidas perdidas. Na virada do século passado, houve um movimento de introdução de um novo conceito de reatores, os chamados SMR. A ideia de modularidade e menor porte visa tanto a redução de custos para início da produção de eletricidade quanto vantagens em segurança e controle de módulos de tamanho reduzido. Há também os chamados microrreatores nucleares [MNR], que não carregam o conceito intrínseco de modularidade [ver Pesquisa FAPESP no 353]. São pensados para funções específicas, como cogeração em setores que demandam independência da rede ou em regiões isoladas e off grid. Hoje há mais de 100 projetos propostos e em andamento de SMR e MNR no mundo, revisados a cada dois anos pela Agência Internacional de Energia Atômica [Aiea]. Esse novo paradigma, que coincide com o renascimento da energia nuclear, gerou um número exagerado de novas concepções, mas nem todas serão levadas até o fim. Ainda existem obstáculos para implementação dessas tecnologias. O SMR NuScale, dos Estados Unidos, por exemplo, apesar de licenciado, encontrou dificuldades de financiamento.
O Brasil tem iniciativas nessa área?
O país pode ter no Labgene seu primeiro projeto de microrreator nuclear. Construído para o submarino nuclear, ele tem uma dualidade natural, podendo ser utilizado em versão modificada para geração de base em microgrids com energias renováveis intermitentes, em particular eólica e solar. Embora seja tipicamente um reator de água pressurizada [PWR] de geração II, típico dos anos 1970 e 1980, muitos reatores dessa época continuam em funcionamento no mundo. A pesquisa e o desenvolvimento não podem ser interrompidos. Temos que pensar em um próximo reator, começando pela sua concepção em consonância com sua missão. As demandas para cogeração de água dessalinizada e hidrogênio, bem como para uso no setor de petróleo e gás, são exemplos de aplicação imediatos e evidentes de reatores de menor porte. Uma opção é o emprego de uma versão reprojetada do Labgene, para atendimento de requisitos de perfil de utilização e de segurança adicionais. Outra seria desenvolver uma nova família de microrreatores mais alinhada às novas concepções de geração IV hoje existentes. Os dois caminhos podem ser trilhados simultaneamente numa fase conceitual.
Como anda o projeto do submarino nuclear brasileiro?
Apesar da resistência geopolítica e do cerceamento tecnológico, a Marinha prossegue em sua missão de prover o país com seu primeiro submarino convencionalmente armado de propulsão nuclear [SNCA]. O submarino nuclear é o principal meio naval de dissuasão em qualquer cenário. Com nossa imensa Amazônia Azul, com riquezas minerais e de biodiversidade, não podemos desistir de obter essa plataforma. A percepção geopolítica do Brasil no cenário internacional será redesenhada. De um lado, o Programa de Desenvolvimento de Submarinos, o Prosub, segue a passos largos, já montando o seu quarto e último submarino convencional no acordo com a França e iniciando os testes de fabricação dos anéis do SNCA. Do outro lado, o Programa Nuclear da Marinha entra na fase final de montagem eletromecânica do bloco do reator do Labgene. Os atrasos ocorridos têm diversas origens, desde a interrupção de repasses de recursos até quebras de contrato e negativas de importação, em um quadro geopolítico desfavorável em que os detentores das tecnologias não têm interesse em que tenhamos sucesso neste que é o maior projeto tecnológico já realizado no país. A conclusão do submarino de propulsão nuclear depende diretamente do sucesso na montagem e dos testes do Labgene. Esses testes devem ser concluídos até 2030. A finalização do submarino está prevista para a próxima década.
Com quais projetos está envolvido no momento?
Estou cedido pela UFRJ à empresa estatal Amazul – Amazônia Azul Tecnologias de Defesa, ligada à Marinha do Brasil. Desde 2019 sou consultor técnico da Direção-geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha [DGDNTM], em São Paulo, atualmente liderada pelo Almirante de Esquadra Alexandre Rabello de Faria. Atuo como coordenador ou colaborador em projetos de interesse do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo [CTMSP], mais ligados à área nuclear, e do Centro Tecnológico da Marinha no Rio de Janeiro e seus institutos, associados a temas não nucleares. As áreas de atuação estão dentro da minha expertise em transferência de calor e massa e mecânica dos fluidos, disciplinas fundamentais da grande área conhecida como ciências térmicas. Os temas incluem dessalinização nuclear, destilação por membranas com recuperação de calor, metamateriais térmicos para concentração de calor, captura e remoção de gases por zeólitas [grupo de minerais com estrutura porosa] e membranas, colheita de energia de correntes com materiais piezoelétricos, entre outros.
Do que trata exatamente a área de ciências térmicas?
Termodinâmica, mecânica dos fluidos e transferência de calor e massa são as três disciplinas fundamentais da física clássica que compõem a base teórica do que conhecemos como ciências térmicas e, no contexto das aplicações, como engenharia térmica. Dediquei minha vida ao estudo dos fenômenos de transferência de calor e massa e sua presença em desafios da engenharia moderna, sempre buscando inovar nas metodologias de análise. Essa grande área apresenta desafios científicos e tecnológicos em diferentes setores, como nas engenharias nuclear, aeroespacial, mecânica, ambiental, química, biomédica. Basta olhar à nossa volta e perceber que as ciências térmicas estão presentes em quase tudo que nos cerca e com que interagimos, desde o nosso próprio corpo a tudo o que acontece no mundo, seja por ação do homem ou naturalmente. Para exemplificar essa abrangência, já trabalhei com a proteção térmica de foguetes para resistir à reentrada na atmosfera até a análise dos efeitos térmicos nos tecidos humanos de fisioterapias com ultrassom.
Quais foram suas principais contribuições na área de ciências térmicas?
Com o advento do computador digital, em particular a partir da década de 1970, o desenvolvimento da simulação computacional na engenharia e ciências afins ganhou grande destaque em todo o mundo. Essa nova onda científica caracterizou-se pelo acelerado desenvolvimento de métodos ditos numéricos ou discretos para as equações que governam os problemas de engenharia. Esse progresso levou praticamente ao abandono dos métodos analíticos clássicos surgidos no século XIX e na primeira metade do século XX, que erigiram o arcabouço teórico das ciências da engenharia, antes da existência do computador. Preguei durante minha carreira a combinação sinérgica dessas duas correntes, visando o desenvolvimento de métodos híbridos numérico-analíticos com maior precisão e menor custo computacional. Assim, inovei na proposição e no desenvolvimento das chamadas técnicas da Transformada Integral Generalizada [GITT] e das Equações Integrais Acopladas [CIEA]. Elas se notabilizaram inicialmente na área de transferência de calor e massa e depois foram estendidas para outros campos da ciência. Os ganhos em precisão, robustez e custo computacional em relação aos métodos numéricos clássicos se provaram significativos e as técnicas têm reconhecimento internacional. O Brasil está associado como sua principal fonte de desenvolvimento.
O senhor já participou de projetos nacionais estratégicos, como o das ultracentrífugas para enriquecimento isotópico de urânio. Qual a importância dele para sua carreira?
Ao fim do meu doutorado na NCSU, em 1985, tive a oportunidade de conhecer na Coordenadoria de Projetos Especiais [Copesp] o Almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, que coordenava o Programa Nuclear da Marinha. A Copesp funcionava naquela época ao lado do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares [Ipen], no campus da Universidade de São Paulo, onde hoje funciona o CTMSP. Fui convidado para me juntar àquele órgão para trabalhar no projeto das ultracentrífugas, mas eu já havia me comprometido a retornar ao ITA a convite do professor Pedro Carajilescov. Surgiu, contudo, a oportunidade de atuar em paralelo ao meu vínculo com o ITA como consultor no projeto das ultracentrífugas. Comecei em 1986 e atuei nele até 2001. Acompanhei o desenvolvimento das primeiras gerações de ultracentrífugas, sempre trabalhando na modelagem matemática e simulação computacional. A metodologia empregada foi uma extensão do que havia desenvolvido no meu doutorado. No fim de 1986, conseguimos uma simulação completa do processo de ultracentrifugação, com baixo custo computacional. No ano seguinte, para acelerar esse desenvolvimento, passei quatro meses em São Paulo totalmente dedicado às simulações da ultracentrífuga. Somente em 2000 pude publicar um artigo sobre essa metodologia aplicada a ultracentrífugas.
Quando começou seu interesse pela área nuclear?
Em 1975, aos 15 anos, quando cursava o ensino médio, visitei a Exposição Brasil Nuclear, organizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Naquela época, pensava em seguir a carreira diplomática, com viés científico na área de energia, influenciado pela crise do petróleo de 1973 e pelos conflitos que dela derivaram. Na exposição, montada a partir de maquetes e painéis, conheci a vida do Almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, pioneiro do Programa Nuclear Brasileiro, e a participação da Marinha nesse setor. Convencido do futuro promissor desta tecnologia, decidi fazer engenharia nuclear. Naquela época não havia esse curso no país e a saída era fazer pós-graduação na área. Em 1976, iniciei a graduação em engenharia na Universidade Federal Fluminense, mesmo antes de concluir o ensino médio, mas decidi me preparar para outro vestibular, da UFRJ, que inaugurara o curso de engenharia com ênfase nuclear. Após monitorias e iniciações científicas na área nuclear, estagiei no Instituto de Engenharia Nuclear [IEN], quando fui treinado no reator Argonauta e nos circuitos termohidráulicos de sódio e água. No último ano da graduação, fiz em paralelo as disciplinas do mestrado em engenharia nuclear – embora não tenha escrito e defendido uma dissertação – e realizei um projeto de final de curso tratando da análise térmica do combustível nuclear para reatores PWR.
Como continuou sua formação acadêmica?
Estimulado pelos professores da UFRJ e com financiamento da Comissão Nacional de Energia Nuclear [Cnen], a decisão de ir para o exterior cursar o doutorado, sem ter feito o mestrado, foi quase natural. Aos 21 anos de idade, cheguei à NCSU, onde foi construído o primeiro reator nuclear de uma universidade e ofertado o primeiro curso de engenharia nuclear no mundo. Curiosamente, também foi lá que se formou o primeiro PhD em engenharia nuclear no mundo, o cientista brasileiro Hervásio de Carvalho [1916-1999], presidente da Cnen à época em que fui aceito para o doutorado. No retorno ao Brasil, nunca deixei de trabalhar na área nuclear, berço da minha formação. Além de integrar o projeto das ultracentrífugas para enriquecimento de urânio, que nos deu autonomia no ciclo do combustível nuclear, participei da análise de segurança do repositório de rejeitos radioativos do acidente com césio-137 em Goiânia, em 1987, e da análise de impacto ambiental e radiológico da mineração de urânio em Caetité, na Bahia, na primeira década desse século, entre outros projetos relevantes.
O que significou ter sido agraciado em 2022 com a Medalha Luikov?
Talvez tenha sido o ponto alto da minha vida profissional. Promovido pela instituição não governamental Centro Internacional de Transferência de Calor e Massa [ICHMT], o prêmio é concedido a pesquisadores com contribuições excepcionais à ciência e à arte da transferência de calor e massa e por atividades de cooperação científica internacional em conjunto com os programas do ICHMT. Na lista de agraciados, temos nove estadunidenses, sete europeus, dois russos e dois japoneses, portanto, nenhum cientista do hemisfério Sul. Durante a cerimônia proferi a palestra mais importante da minha carreira, para uma plateia estimada em 800 cientistas da área.
Em que estágio está o seu projeto que envolve a modelagem de um processo de dessalinização da água do mar com uso de membranas para cogeração de eletricidade, água destilada e hidrogênio verde?
A dessalinização é, em essência, um processo de separação soluto-solvente com o objetivo de remover o sal existente na água salobra ou do mar. Este processo demanda elevado consumo de energia térmica ou elétrica. Uma das alternativas para aumentar a eficiência energética global é aplicar métodos de dessalinização que possam aproveitar a recuperação de calor rejeitado de outros processos. Nesse sentido, o emprego de reatores nucleares para dessalinização faz parte de um conceito mais amplo do uso da energia nuclear em que se considera a cogeração de eletricidade com outros produtos de interesse econômico e social. Hoje, entende-se que competitividade econômica, sustentabilidade e aceitação pública da tecnologia nuclear não dependem apenas de seu uso para a geração elétrica, mas também da abertura de novos mercados e oferta de produtos. Com o progresso da montagem do nosso primeiro reator nuclear de potência, o Labgene, a disponibilidade de um reator desse tipo para pesquisas no país também estimula a proposição de alternativas para cogeração e aumento de eficiência energética.
Pode dar um exemplo?
Sim, o desenvolvimento nacional de um pequeno reator modular PWR para cogeração de água e eletricidade ajuda a enfrentar a escassez de água, enquanto a cogeração de eletricidade e hidrogênio abre uma avenida de oportunidades à produção desse novo e estratégico combustível. Em 2016, quando presidia a Cnen, iniciei estudos de um novo reator modular, o projeto Dessal. Nos últimos anos, como contribuição a esse projeto de maior envergadura, foram propostas inovações no sistema de recuperação térmica, bem como no processo de dessalinização via destilação por membranas, para o melhor acoplamento entre o circuito secundário do reator e a unidade de dessalinização.
Em que outros projetos de dessalinização está envolvido?
Trabalho também no projeto EnerGente, no contexto de uma Ilha de Policogeração Sustentável, coordenado pela engenheira mecânica e professora Carolina Cotta, também da UFRJ, minha esposa e colaboradora mais próxima. Financiado pela Petrogal Brasil, por meio da Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis [ANP], o projeto envolve a cogeração de eletricidade a partir de painéis fotovoltaicos de alta concentração e recuperação de calor dos painéis para reutilização em processo de destilação por membranas para dessalinização de água. Essa iniciativa venceu o Prêmio ANP de Inovação Tecnológica em 2024 e encontra-se em análise pelo governo federal para incorporação em comunidades isoladas do semiárido nordestino.
O senhor também participa de projetos aeroespaciais?
O início de minha carreira no ITA e a forte interação com o IAE [Instituto de Aeronáutica e Espaço] e o Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] foram determinantes para o foco em pesquisas nessa área. Entre outros projetos, trabalhei na análise térmica da plataforma de lançamento do Veículo Lançador de Satélites, o VLS [foguete brasileiro que explodiu em solo, em 2003, vitimando 23 técnicos], na análise de superisolantes para controle térmico de satélites, no desenvolvimento do sistema de proteção térmica do Sara, o Satélite de Reentrada Atmosférica, do IAE. Recentemente coordenei pesquisas na análise teórico-experimental de sistemas antigelo de sondas pitot, dispositivo que fornece dados para determinar a velocidade e a altitude de aviões. Nesse estudo, feito em colaboração com a Marinha e a empresa ATS4i, foi projetado e construído na Coppe o primeiro túnel de vento de formação de gelo. Combinado a ensaios em voo com o jato Skyhawk A4 da Marinha, foi explicado o fenômeno de formação de gelo em sondas pitot que levou à tragédia do voo 447 da Air France, em 2009 [o avião fazia a rota Rio de Janeiro-Paris e caiu no oceano Atlântico, vitimando seus 228 ocupantes]. O trabalho final dessa pesquisa ganhou um importante prêmio do ICHMT em 2015. A dedicação ao estudo das causas do acidente do AF447 tem uma raiz emocional e pessoal muito forte, pois foi o caminho que trilhei para superar a trágica perda de minha filha Bianca e de meu genro Carlos Eduardo, que voavam para sua lua-de-mel naquele avião. Esse foi o trabalho mais importante da minha vida, não apenas por demonstrar o processo de congelamento das sondas, mas também pela proposição de alternativas para evitar que isso ocorra novamente. Foi a forma que encontrei para abrandar a dor, me dedicando a um estudo que chamou a atenção para um problema de engenharia que afeta a segurança na aviação, na esperança de que vidas sejam poupadas em situações similares no futuro.
A reportagem acima foi publicada com o título “Renato Cotta: Em defesa da energia nuclear” na edição impressa nº 354, de agosto de 2025.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.